Busca sem resultado
jusbrasil.com.br
11 de Maio de 2024
    Adicione tópicos

    Flagrante de trabalho escravo muda paradigmas de atuação no setor têxtil

    Campinas (SP) - Nos 25 anos de história do Ministério Público do Trabalho em Campinas, nenhum fato deu tanta repercussão quanto o caso Zara. Publicado pela imprensa em mais de 80 países, o flagrante de trabalho escravo envolvendo a famosa grife espanhola chocou o mundo e trouxe à tona uma discussão até então encarcerada nos porões das oficinas clandestinas.

    A implicação do trabalho de procuradores e auditores fiscais neste episódio se deu na seara social e econômica, trazendo conseqüências inéditas ao setor de confecções e à vida de trabalhadores até então alienados dos mais básicos direitos.

    A escravidão contemporânea ou análoga, tema constante de debates promovidos por setores da sociedade civil, ganhou forma e revigorou-se em face da desvendada realidade de imigrantes achincalhados pela (i) lógica da cadeia produtiva têxtil.

    Os desdobramentos do caso fora do Brasil dispararam aos agentes públicos um alerta vermelho. Audiências na Assembléia Legislativa de São Paulo, pedidos de abertura de CPI, reuniões em Comissões do Congresso Nacional: todos os fatos advindos do caso Zara refletem a preocupação dos brasileiros para com a imagem de seu país no exterior.

    No curto espaço de três meses, período em que o trabalho de campo foi realizado, um desafio despontou às instituições: as mudanças devem vir em prol de todo um segmento econômico, não apenas dos empregados ou terceirizados de uma empresa, no sentido de atingir a qualidade de vida desses trabalhadores e dar cumprimento aos desígnios constitucionais, notadamente ao princípio da dignidade humana.

    Mas todo processo de transformação tem um ponto de partida. E foi pensando nisso que se chegou a uma proposta de acordo com a Inditex, detentora da marca Zara, com a previsão do fim das subcontratações e da responsabilidade trabalhista sobre terceiros. Apesar da recusa da empresa em assinar o Termo de Ajuste de Conduta (TAC), a postura dos procuradores, inconciliável em relação às obrigações pedidas, mostra uma tendência em buscar a solução definitiva, a se estender para toda a cadeia de confecções. Saiba como foi o caso desde o início:

    Em maio de 2011, a Gerência Regional do Trabalho de Campinas remeteu denúncia à Procuradoria, descrevendo com minúcias o conteúdo de uma ligação efetuada ao posto de atendimento do Ministério do Trabalho e Emprego de Americana de um telefone público. Um denunciante nervoso dava as coordenadas de uma oficina de costura onde aparentemente havia mão de obra escrava.

    A representação foi distribuída à banca da procuradora Fabíola Zani, que imediatamente designou diligência ao local, acompanhada dos procuradores Nei Messias e Ronaldo Lira, além dos auditores fiscais João Batista Amâncio e Márcia Marques.

    Chegando ao endereço, um galpão mal acabado de dois andares se descortinava por detrás de um grande e enferrujado portão de aço. Podia-se ouvir o som barulhento e repetitivo das máquinas de costura a trabalhar incessantemente.

    Dentro da oficina, o impacto de mais de 50 pessoas trabalhando em meio a pilhas desorganizadas de tecidos, lado a lado com fios desencapados e extintores vazios. Esse lugar pode pegar fogo a qualquer momento, disse um dos auditores, observando a quantidade de improvisações elétricas para suprir o funcionamento de tantas máquinas. O calor era insuportável.

    Em depoimento, trabalhadores admitiram receber aproximadamente R$ 0,20 por peça produzida, o que resultava em jornadas exaustivas de até 14 horas. Começamos a costurar às 07h00 e terminamos às 21h00, disse um deles. Em sua maioria bolivianos (46 do total), os costureiros desconheciam a lei brasileira. Boa parte deles permanecia no país de forma ilegal, sem visto de permanência válido.

    Os trabalhadores residiam no segundo andar do galpão junto com seus filhos pequenos. Em todos os quartos havia um botijão de gás, o que aumentava rigorosamente os riscos de explosão e contaminação por vazamento de gás. A condição sanitária das moradias era muito ruim, com comida estocada irregularmente e falta de limpeza. A Vigilância Sanitária da cidade de Americana interditou o local.

    A fiscalização efetuou o resgate dos trabalhadores, enquadrando a situação como redução de pessoas a condições análogas à escravidão, conhecida como escravidão moderna ou contemporânea, com a emissão de guias de seguro desemprego e pagamento de verbas rescisórias, efetuados pela Rhodes, prestadora da Zara que subcontratava a oficina.

    O MPT se reuniu com auditores da Superintendência Regional do Trabalho em São Paulo na sede da Procuradoria, em Campinas, para ampliar a investigação e levantar outras etapas da cadeia produtiva, especialmente pelo fato da Zara concentrar suas operações na capital.

    Foram encontradas outras duas oficinas que forneciam para a marca espanhola, uma com 6 trabalhadores bolivianos e outra com 10. A situação era bastante parecida com a de Americana, mas com um agravante: os bolivianos precisavam da autorização do dono das oficinas para ter o direito de ir e vir atendido. Todos foram resgatados.

    Após a instrução do processo por Campinas, os procuradores do município de Osasco instauraram inquérito em face da empresa, especialmente pelo fato da Zara possuir pessoa jurídica registrada em Barueri, área atendida por aquela Procuradoria. Desde então, o processo tramita no MPT em São Paulo.

    Nas próximas semanas, o MPT dará uma resposta à sociedade, no sentido de mostrar providências em favor da regularização da cadeia produtiva de fornecedores da Zara, seja por meio de uma última tentativa de acordo ou pelo Judiciário.

    Diálogo e prevenção

    Pela gravidade do caso, o MPT em Campinas decidiu se reunir com outras instituições para tratar o setor de confecções como uma das prioridades de atuação institucional, entre eles, o Comitê Interestadual de Prevenção e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Cipetp), órgão da Secretaria de Justiça e Cidadania do Governo de Estado de São Paulo.

    A procuradora-chefe do MPT, Catarina von Zuben, se reuniu com membros do Comitê para discutir estratégias de combate ao trabalho degradante envolvendo imigrantes, em especial aqueles relacionados ao setor têxtil.

    Ficou consignada a necessidade da participação das prefeituras das regiões onde há grande concentração de oficinas, para a discussão de políticas públicas que minimizem esses impactos, assim como a conjunção de esforços para a disponibilização de locais que sirvam de abrigo ao estrangeiro em casos de resgate por trabalho escravo ou dificuldades de moradia, a exemplo do que já acontece na capital paulista. A parceria entre MPT e órgãos como a Secretaria Estadual de Justiça são estratégicas na busca por soluções para os entraves envolvendo trabalhadores estrangeiros, como o aliciamento de mão de obra, de forma a criar meios para salvaguardas jurídicas e sociais aos indivíduos, evidencia von Zuben.

    Foi discutida a migração de estrangeiros de grandes centros urbanos, como São Paulo, para cidades menores, como Americana, Nova Odessa e Indaiatuba, o que justificaria um trabalho conjunto das instituições do interior do estado na busca por melhores condições de trabalho e da legalidade dessas pessoas no Brasil. O aumento das fiscalizações de órgãos trabalhistas, bem como o aumento das exportações de empresas do interior e o próprio custo de vida das grandes cidades são fatores que explicam o deslocamento observado, explica Ronaldo Lira, que também participou do encontro.

    O MPT buscará o apoio dos representantes do empresariado da indústria paulista, como SESI e Ciesp, para que integrem o Comitê e busquem soluções conjuntas para os gargalos trabalhistas e sociais gerados pela imigração de bolivianos.

    Concomitantemente ao trabalho com o Comitê, o MPT dará andamento aos seus inquéritos contra irregularidades na indústria da confecção com ações preventivas casadas com ações repressivas.

    • Publicações1259
    • Seguidores43
    Detalhes da publicação
    • Tipo do documentoNotícia
    • Visualizações667
    De onde vêm as informações do Jusbrasil?
    Este conteúdo foi produzido e/ou disponibilizado por pessoas da Comunidade, que são responsáveis pelas respectivas opiniões. O Jusbrasil realiza a moderação do conteúdo de nossa Comunidade. Mesmo assim, caso entenda que o conteúdo deste artigo viole as Regras de Publicação, clique na opção "reportar" que o nosso time irá avaliar o relato e tomar as medidas cabíveis, se necessário. Conheça nossos Termos de uso e Regras de Publicação.
    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/flagrante-de-trabalho-escravo-muda-paradigmas-de-atuacao-no-setor-textil/2953719

    0 Comentários

    Faça um comentário construtivo para esse documento.

    Não use muitas letras maiúsculas, isso denota "GRITAR" ;)